“Respira fundo, é oxigênio”.
Essa foi a última frase que
lembro ter ouvido do anestesista enquanto a sua ajudante segurava o
oxigênio próximo da minha boca.
E enquanto respirava fundo, me
dei conta que jamais tinha respirado um ar tão puro como aquele, e
me concentrei ao máximo para aproveitá-lo, pois sabia-se lá Deus
quando eu iria voltar a respirar novamente.
Embora tenha parecido ser uma
decisão de última hora, a verdade é que há anos eu adiava a
rinoplastia, a tal cirurgia para a correção do meu desvio de septo
nasal. Noites e noites sem dormir direito, dias fungando, casacos com
diversos lenços de papel pelos bolsos, espirros inusitados, barulhos
inconstantes, exaustão.
Após apagar completamente com
a anestesia geral, acho que algumas horas depois acordei no caminho
da sala de cirurgia para a sala de recuperação, quando então o
anestesista fez um pit stop para que a minha tia, minha fiel
escudeira do início da minha batalha, pudesse ter notícias minhas e
repassar para a minha mãe e meu marido, que chegariam logo após
para me acompanhar no restante da minha corajosa jornada.
Lembro que antes de me preparar
para a cirurgia o médico me alertou que ao final ele iria
enfaixar meus olhos para que o inchaço fosse "menos pior" do que o
normal na região dos olhos e dos seios da face, esclarecendo que eu
não me preocupasse, pois não poderia abrir os olhos por umas 4h,
mais ou menos, situação essa que deveria ser encarada como normal.
Ao ouvir a voz da minha tia e
do anestesista conversando entre si e comigo, percebi que não tinha
condições alguma de abrir os olhos, mas não sentia qualquer dor no
nariz, estava me sentindo bem. Minha tia ainda brincou dizendo que
tinham mexido nos meus olhos, como se tivessem trocado a cor deles...
eu logo corri na frente e lembro de ter dito: “finalmente terei
olhos verdes...”.
Comentário de pessoa
anestesiada, óbvio.
O anestesista, mais
engraçadinho ainda, disse que teriam ficado azuis da cor do Grêmio
e eu, Colorada até a alma, cheguei a sentir uma estranha dor na
hora... passageira e extremamente psicológica, claro.
Já na sala de recuperação, a
única coisa que sentia era fome, sede e a minha audição
ligeiramente aguçada. Ar, só pela boca. Ouvia o ti ti ti do pessoal
que trabalhava na sala de recuperação, uns indo para a direita,
outros para esquerda. Mesmo com os olhos enfaixados, via uma
claridade à minha frente e imaginava que pudesse ser de uma janela.
Foi uma mulher a primeira
pessoa que falou comigo na sala de recuperação. Sua voz parecia ser
jovem, falava devagar e discretamente, parecia saber o que estava
fazendo, percepção essa que me trouxe uma certa segurança. Perguntou como eu estava, eu disse que estava com fome e com
muita sede, queria água. Ela logo me alertou dizendo que checaria se
eu poderia beber e comer alguma coisa e já voltaria.
Um vazio se fez.
Por um período que não sei
precisar quanto ninguém apareceu. Levantei o braço direito, pois
era a única maneira de eu me comunicar deitada naquela cama com o
rosto todo enfaixado. Alguém parou e perguntou: “está tudo bem?”.
“Quero água”, eu disse.
Em seguida veio a mesma moça
que falou comigo da primeira vez e me trouxe água em um copo com
canudo e um pouco de gelatina. Me ajudou a tomar água, disse que eu bebesse
devagar, e depois me ajudou a comer umas duas colheradas de gelatina. A minha
fome era de alguma coisa salgada, não doce. E aí ela se despediu,
disse que o turno dela estava acabando e me desejou melhoras.
Outro vazio se fez.
Entre uma cochilada e outra eu
podia ouvir os funcionários da sala de recuperação conversando
sobre banalidades de suas vidas particulares, bem como sobre a falta
de leitos para alguns operados, como era o meu caso, que estava
aguardando um quarto. E eles também conversavam sobre o estado de
saúde de algumas pessoas, não sei se daquelas que estavam na sala
de recuperação ou não, o que me deixou um pouco constrangida. Era como se
estivessem falando da vida daquelas pessoas que estavam ali, se
recuperando de uma cirurgia qualquer, sem qualquer pudor, como se
elas não pudessem dizer nada, principalmente ouvir. Eu quis falar,
dizer-lhes que não falassem das pessoas, pois elas poderiam estar debilitadas e, como eu, ouvindo.
Certamente eu parecia não
estar ouvindo nada, pois estava - segundo a minha mãe me
confidenciou depois, quando então foi-lhe permitida a entrada na
sala de recuperação – como uma múmia (com o rosto todo
enfaixado).
O tempo passava e a fome e a
sede cresciam. Ergui novamente o meu braço direito e uma mão
delicada, suave, com a pele hidratada, levemente tocou na minha e
perguntou: “O que precisas?”. “Água”. Logo em seguida minha
mãe entrou na sala de recuperação e, como uma heroína, me salvou
da fome e da sede.
Mãe é mãe, não adianta.
A funcionária trouxe suco de
gelatina, gelatina sólida e um iogurte light. Eu só pensava: “pra
quê tanta gelatina, que coisa mais enjoativa, manda logo um franguinho
grelhado com arroz e purê de batatas”. Daí minha mãe, que adora
uma conversa, após me perguntar como eu estava me sentido, começou
a me descrever o lugar e as pessoas ao redor, já que eu estava
“cega” no momento.
Eu comentei com ela o fato de
eu estar ouvindo tudo o que as pessoas estavam conversando e de como
havia me sentido ao ouvir falarem dos outros "cirurgiados". E enquanto
falava me dava conta que é exatamente isso que todos nós fazemos
durante a nossa vida. A única diferença é que eu não estava
VENDO, estava apenas OUVINDO e, portanto, CONSTATANDO atenciosamente.
Quantas vezes não fazemos um
comentário horroroso sobre alguém minutos depois de ela sair da
sala? Quantas vezes não fomentamos uma fofoca grosseira sobre
alguém, mesmo quando não temos a menor ideia de que realmente o
fato existiu? Por que temos essa necessidade de cuidar da vida dos
outros?
Esse foi o meu primeiro choque
pós-cirúrgico.
Aquela constatação me partiu a alma.
Quantas vezes eu não teria
agido assim? E o pior, sem me dar conta?
Após uma conversa engraçada e
divertida com a minha mãe, que me fez rir como uma estátua, ou
múmia – como ela mesma me definiu - ela teve que sair e se
despedir, um pouco chateada, pois não tinham deixado ela entrar com
o celular e ela queria tirar uma fotografia minha para que eu me
visse posteriormente. Coisas de Beth, mas eu teria adorado ver essa
fotografia. Me contentei com a minha imaginação, que estava mais do
que criativa naquela quinta-feira.
E chega uma hora na sala de
recuperação que tu tens vontade de levantar da cama e ir pra casa.
Não sei se isso acontece com todo mundo, mas eu já não aguentava
mais me “recuperar” da cirurgia. Já tinha tomado água, comido
todas as formas da gelatina, conversado com a minha mãe, ouvido as
histórias dos funcionários. Já sabia que ainda não tinha um leito
livre pra mim.
Foi quando então me deu aquela
vontade de fazer xixi. Bah, ergui novamente o braço. Eu tinha duas
alternativas: a “comadre”, em que eu iria urinar ali na cama
mesmo, sem a menor ideia de como seria “operacionalizada” a
coisa, ou esperar mais alguns minutinhos para tirar a faixa dos meus
olhos e ser levada até o “banheiro”. Alternativa dois, por
favor.
Após longos minutos veio a
funcionária com os aparatos e começou a, literalmente, me
desvendar. E logo veio o segundo choque pós-operatório.
Ela tirou a faixa e eu não
enxergava absolutamente nada.
Pacientemente a funcionária me
alertou: “não te preocupas, logo vais voltar a enxergar, a faixa
estava pressionando os teus olhos, isso é normal. Eu vou tirar o
excesso da pomada que está ao redor”.
Normal?
Normal para mim seria se eu
tivesse despertado de um sono qualquer, vendo todas as cores e
formas, como acontece todas as manhãs, mesmo que com uma visão um
pouco míope.
Fiquei atônica por alguns
instantes e pensei: “então é assim que os cegos se sentem?”
Que droga.
Primeiro, nada existia. Depois,
minha visão ficou esbranquiçada. Aos poucos foi
voltando e com ela, a noção de quão importante é ENXERGAR nesta
vida. Mas é engraçado como eu estava “VENDO” toda essa situação
sem “ENXERGAR”.
Muitas vezes na vida nós vemos, mas não enxergamos.
A primeira coisa que enxerguei
quando vi novamente foi a janela à minha frente. De fato havia uma
janela. Mas eu a imaginava pequena, enquanto ela percorria todo um
corredor, dava para a frente do hospital, e eu já podia ver que o
sol estava se pondo, em um lindo fim de tarde. Os raios de sol
cruzavam a faixada do prédio do outro lado da rua e eu avistava
algumas árvores - a cena era incrivelmente colorida.
Nesse instante, nesse exato
instante, eu agradeci a Deus por ENXERGAR, por OUVIR, por SENTIR, por
PENSAR e, por num futuro bem próximo, voltar a RESPIRAR novamente.
Depois de “recuperada” e de
um leito vago, fui descansar em outro andar, quando então minha mãe
e meu marido passaram a me acompanhar no restante da minha inusitada
empreitada.
Nenhuma dor no nariz, nenhuma
complicação. Apenas um congestionamento nasal pesado, respiração
pela boca, visão turva da miopia e da impossibilidade de usar meus óculos ou minhas lentes de contato, cansaço da cirurgia, e muita
coisa para dialogar comigo mesma.
Silêncio.
Momentos de paz.
Fiquei apenas uma noite no
hospital e no outro dia já estava liberada para ir para casa. Muitas
ligações, mensagens pelo celular, mimos e carinhos da família e
amigos. Hematomas pelo rosto (faz parte da rinoplastia a que me
submeti), o ar voltando aos pouquinhos a habitar o meu nariz,
agradecimentos ao meu médico, Dr. Júlio Stédile Ribeiro, ao
anestesista Gustavo (que ressurgiu de um ponto do passado de
Garopaba), à equipe do Hospital Mãe de Deus, à minha tia Zéca, à
minha mãe Beth e ao meu marido Paul.
Ainda não estou com o nariz
100% funcionando e o meu rosto ainda está qualquer coisa inchado e
roxo. Ossos do ofício. Primeira batalha, vencida.
Contudo, estou reaprendendo a
respirar, instruindo a visão, aprendendo a ouvir, renovando o
sentir. Segunda batalha, em exercício.