quarta-feira, outubro 30, 2013

O tempo, o trânsito e a despedida

Dizem que percorremos os caminhos que escolhemos, sejam boas ou más escolhas, mas a verdade é que só saberemos o que aprenderemos com elas depois de vivenciá-las.

Fiquei um pouco mais de um ano trabalhando em uma cidade próxima da capital, mais ou menos há uma hora e meia de casa, de carro. Embora exista uma infinidade de pessoas que não gostem de viver no trânsito e não têm a menor paciência com ele, eu sempre gostei de dirigir, principalmente o meu carro.

E já que tinha que me acostumar a perder quase que 3h por dia dentro dele, que fosse da forma mais saudável possível. Por algum tempo apenas ouvia música, percebia a falta de educação de motoqueiros, taxistas e motoristas de ônibus da capital gaúcha, sonhando em um dia acordar com uma brilhante ideia para “educar as pessoas no trânsito”.

Infelizmente, foram longos dias assistindo as maiores atrocidades nas vias públicas gaúchas, em meio a rezas de que eu jamais seria uma daquelas pessoas estúpidas a criar problemas daqueles feitios. Peguei chuva, sol, vento, calor, tempestades, dias nublados, ensolarados, vi caminhões tombados, acidentes recém ocorridos, gastei muita grana nos pedágios e chorei pelas estradas não receberem o devido retorno.

Certa vez, não sei bem ao certo como aconteceu, mas entrou na minha vida os tais audio-books, e também consegui com a minha professora de pilates local (a querida Simone) as melhores palestras de vida que já ouvi, provenientes do meu amigo “Di”, como passei a chamá-lo, depois de tantas conversas pelo caminho. Foram os melhores momentos da minha jornada diária no trânsito. Tinha dias que não queria chegar no trabalho sem antes ouvir o fim de um capítulo, ou ficava em frente a minha casa, esperando o tópico acabar. E foi aí que entendi aquele ditado de que mais vale o percurso da viagem do que a chegada no destino final.

Assim, o trânsito cansativo e angustiante de todos os dias foi perdendo espaço para os meus áudios, que me trouxeram um doce alento durante o caminho. Igualmente, pouco a pouco fui começando a me apaixonar pelo meu local de trabalho, um ambiente de boa harmonia, onde conheci diversas pessoas do bem. Essas sim eram a alegria dos meus dias de trabalho, por mais pesados que eles fossem, por mais problemas que eu tivesse que resolver. Nada se compara ao fato de podermos contar com pessoas sinceras, adoráveis, educadas e inteligentes.

E difícil mesmo foi, depois de pouco mais de um ano, deixar a sala 13, as minhas queridas estagiárias Eniale, Jana e Paty (responsáveis, inteligentes e lindas), a tia Vera e suas guloseimas maravilhosas, as conversas agradáveis de corredor de fórum, as tentativas – todas frustradas – de fazer o cover da cantora Paula Fernandes para a Loiva e a Terê, enfim, tanta gente bacana de se conviver e de se viver, que vai ser difícil nominar. Ali pertinho, também vou sentir saudades das Gabrielas e da Camila, bem como de trabalhar ao lado de uma colega muito especial: a Roberta.

Despedida sempre é um troço ruim, principalmente quando se deixa um lugar muito bom. Mas no meu caso, nunca é tarde para voltar lá e viver outras tantas coisas boas novamente, já que, na minha profissão, é sempre possível voltar atrás em algum lugar do Estado. Pena que, se um dia eu voltar, muita gente boa não estará mais por lá. Por enquanto, o lugar está seguro com o Rodrigo.

Se me perguntarem se valeu a pena desperdiçar praticamente 3h do meu dia dentro de um carro, ter paciência para o engarrafamento na saída e na entrada de Porto Alegre, ter disposição para trabalhar mais 8h por dia, eu digo que faria tudo novamente, principalmente se o “Di” continuasse a me acompanhar.


Às vezes só entendemos porque trilhamos certo caminho um tempo depois. Às vezes, nunca chegamos a entender porque tivemos que percorrê-lo. Mas o principal é poder olhar pra trás e sentir que o dever foi cumprido e, por mais árduo, ainda assim, fomos muitos felizes.

Até logo, Charqueadas querida.

Obs.: "Di" é o apelido carinhoso que dei a Divaldo Pereira Franco, grande homem.

domingo, maio 05, 2013

2013 - o ano de dar valor aos sentidos


Respira fundo, é oxigênio”.

Essa foi a última frase que lembro ter ouvido do anestesista enquanto a sua ajudante segurava o oxigênio próximo da minha boca.
E enquanto respirava fundo, me dei conta que jamais tinha respirado um ar tão puro como aquele, e me concentrei ao máximo para aproveitá-lo, pois sabia-se lá Deus quando eu iria voltar a respirar novamente.

Embora tenha parecido ser uma decisão de última hora, a verdade é que há anos eu adiava a rinoplastia, a tal cirurgia para a correção do meu desvio de septo nasal. Noites e noites sem dormir direito, dias fungando, casacos com diversos lenços de papel pelos bolsos, espirros inusitados, barulhos inconstantes, exaustão.

Após apagar completamente com a anestesia geral, acho que algumas horas depois acordei no caminho da sala de cirurgia para a sala de recuperação, quando então o anestesista fez um pit stop para que a minha tia, minha fiel escudeira do início da minha batalha, pudesse ter notícias minhas e repassar para a minha mãe e meu marido, que chegariam logo após para me acompanhar no restante da minha corajosa jornada.

Lembro que antes de me preparar para a cirurgia o médico me alertou que ao final ele iria enfaixar meus olhos para que o inchaço fosse "menos pior" do que o normal na região dos olhos e dos seios da face, esclarecendo que eu não me preocupasse, pois não poderia abrir os olhos por umas 4h, mais ou menos, situação essa que deveria ser encarada como normal.

Ao ouvir a voz da minha tia e do anestesista conversando entre si e comigo, percebi que não tinha condições alguma de abrir os olhos, mas não sentia qualquer dor no nariz, estava me sentindo bem. Minha tia ainda brincou dizendo que tinham mexido nos meus olhos, como se tivessem trocado a cor deles... eu logo corri na frente e lembro de ter dito: “finalmente terei olhos verdes...”.

Comentário de pessoa anestesiada, óbvio.

O anestesista, mais engraçadinho ainda, disse que teriam ficado azuis da cor do Grêmio e eu, Colorada até a alma, cheguei a sentir uma estranha dor na hora... passageira e extremamente psicológica, claro.

Já na sala de recuperação, a única coisa que sentia era fome, sede e a minha audição ligeiramente aguçada. Ar, só pela boca. Ouvia o ti ti ti do pessoal que trabalhava na sala de recuperação, uns indo para a direita, outros para esquerda. Mesmo com os olhos enfaixados, via uma claridade à minha frente e imaginava que pudesse ser de uma janela.

Foi uma mulher a primeira pessoa que falou comigo na sala de recuperação. Sua voz parecia ser jovem, falava devagar e discretamente, parecia saber o que estava fazendo, percepção essa que me trouxe uma certa segurança. Perguntou como eu estava, eu disse que estava com fome e com muita sede, queria água. Ela logo me alertou dizendo que checaria se eu poderia beber e comer alguma coisa e já voltaria.

Um vazio se fez.

Por um período que não sei precisar quanto ninguém apareceu. Levantei o braço direito, pois era a única maneira de eu me comunicar deitada naquela cama com o rosto todo enfaixado. Alguém parou e perguntou: “está tudo bem?”. “Quero água”, eu disse.

Em seguida veio a mesma moça que falou comigo da primeira vez e me trouxe água em um copo com canudo e um pouco de gelatina. Me ajudou a tomar água, disse que eu bebesse devagar, e depois me ajudou a comer umas duas colheradas de gelatina. A minha fome era de alguma coisa salgada, não doce. E aí ela se despediu, disse que o turno dela estava acabando e me desejou melhoras.

Outro vazio se fez.

Entre uma cochilada e outra eu podia ouvir os funcionários da sala de recuperação conversando sobre banalidades de suas vidas particulares, bem como sobre a falta de leitos para alguns operados, como era o meu caso, que estava aguardando um quarto. E eles também conversavam sobre o estado de saúde de algumas pessoas, não sei se daquelas que estavam na sala de recuperação ou não, o que me deixou um pouco constrangida. Era como se estivessem falando da vida daquelas pessoas que estavam ali, se recuperando de uma cirurgia qualquer, sem qualquer pudor, como se elas não pudessem dizer nada, principalmente ouvir. Eu quis falar, dizer-lhes que não falassem das pessoas,  pois elas poderiam estar debilitadas e, como eu, ouvindo.

Certamente eu parecia não estar ouvindo nada, pois estava - segundo a minha mãe me confidenciou depois, quando então foi-lhe permitida a entrada na sala de recuperação – como uma múmia (com o rosto todo enfaixado).

O tempo passava e a fome e a sede cresciam. Ergui novamente o meu braço direito e uma mão delicada, suave, com a pele hidratada, levemente tocou na minha e perguntou: “O que precisas?”. “Água”. Logo em seguida minha mãe entrou na sala de recuperação e, como uma heroína, me salvou da fome e da sede.

Mãe é mãe, não adianta.

A funcionária trouxe suco de gelatina, gelatina sólida e um iogurte light. Eu só pensava: “pra quê tanta gelatina, que coisa mais enjoativa, manda logo um franguinho grelhado com arroz e purê de batatas”. Daí minha mãe, que adora uma conversa, após me perguntar como eu estava me sentido, começou a me descrever o lugar e as pessoas ao redor, já que eu estava “cega” no momento.

Eu comentei com ela o fato de eu estar ouvindo tudo o que as pessoas estavam conversando e de como havia me sentido ao ouvir falarem dos outros "cirurgiados". E enquanto falava me dava conta que é exatamente isso que todos nós fazemos durante a nossa vida. A única diferença é que eu não estava VENDO, estava apenas OUVINDO e, portanto, CONSTATANDO atenciosamente.

Quantas vezes não fazemos um comentário horroroso sobre alguém minutos depois de ela sair da sala? Quantas vezes não fomentamos uma fofoca grosseira sobre alguém, mesmo quando não temos a menor ideia de que realmente o fato existiu? Por que temos essa necessidade de cuidar da vida dos outros?

Esse foi o meu primeiro choque pós-cirúrgico.

Aquela constatação me partiu a alma.
Quantas vezes eu não teria agido assim? E o pior, sem me dar conta?

Após uma conversa engraçada e divertida com a minha mãe, que me fez rir como uma estátua, ou múmia – como ela mesma me definiu - ela teve que sair e se despedir, um pouco chateada, pois não tinham deixado ela entrar com o celular e ela queria tirar uma fotografia minha para que eu me visse posteriormente. Coisas de Beth, mas eu teria adorado ver essa fotografia. Me contentei com a minha imaginação, que estava mais do que criativa naquela quinta-feira.

E chega uma hora na sala de recuperação que tu tens vontade de levantar da cama e ir pra casa. Não sei se isso acontece com todo mundo, mas eu já não aguentava mais me “recuperar” da cirurgia. Já tinha tomado água, comido todas as formas da gelatina, conversado com a minha mãe, ouvido as histórias dos funcionários. Já sabia que ainda não tinha um leito livre pra mim.

Foi quando então me deu aquela vontade de fazer xixi. Bah, ergui novamente o braço. Eu tinha duas alternativas: a “comadre”, em que eu iria urinar ali na cama mesmo, sem a menor ideia de como seria “operacionalizada” a coisa, ou esperar mais alguns minutinhos para tirar a faixa dos meus olhos e ser levada até o “banheiro”. Alternativa dois, por favor.

Após longos minutos veio a funcionária com os aparatos e começou a, literalmente, me desvendar. E logo veio o segundo choque pós-operatório.

Ela tirou a faixa e eu não enxergava absolutamente nada.

Pacientemente a funcionária me alertou: “não te preocupas, logo vais voltar a enxergar, a faixa estava pressionando os teus olhos, isso é normal. Eu vou tirar o excesso da pomada que está ao redor”.

Normal?

Normal para mim seria se eu tivesse despertado de um sono qualquer, vendo todas as cores e formas, como acontece todas as manhãs, mesmo que com uma visão um pouco míope.

Fiquei atônica por alguns instantes e pensei: “então é assim que os cegos se sentem?
Que droga.

Primeiro, nada existia. Depois, minha visão ficou esbranquiçada. Aos poucos foi voltando e com ela, a noção de quão importante é ENXERGAR nesta vida. Mas é engraçado como eu estava “VENDO” toda essa situação sem “ENXERGAR”.

Muitas vezes na vida nós vemos, mas não enxergamos.

A primeira coisa que enxerguei quando vi novamente foi a janela à minha frente. De fato havia uma janela. Mas eu a imaginava pequena, enquanto ela percorria todo um corredor, dava para a frente do hospital, e eu já podia ver que o sol estava se pondo, em um lindo fim de tarde. Os raios de sol cruzavam a faixada do prédio do outro lado da rua e eu avistava algumas árvores - a cena era incrivelmente colorida.

Nesse instante, nesse exato instante, eu agradeci a Deus por ENXERGAR, por OUVIR, por SENTIR, por PENSAR e, por num futuro bem próximo, voltar a RESPIRAR novamente.

Depois de “recuperada” e de um leito vago, fui descansar em outro andar, quando então minha mãe e meu marido passaram a me acompanhar no restante da minha inusitada empreitada.

Nenhuma dor no nariz, nenhuma complicação. Apenas um congestionamento nasal pesado, respiração pela boca, visão turva da miopia e da impossibilidade de usar meus óculos ou minhas lentes de contato, cansaço da cirurgia, e muita coisa para dialogar comigo mesma.

Silêncio.
Momentos de paz.

Fiquei apenas uma noite no hospital e no outro dia já estava liberada para ir para casa. Muitas ligações, mensagens pelo celular, mimos e carinhos da família e amigos. Hematomas pelo rosto (faz parte da rinoplastia a que me submeti), o ar voltando aos pouquinhos a habitar o meu nariz, agradecimentos ao meu médico, Dr. Júlio Stédile Ribeiro, ao anestesista Gustavo (que ressurgiu de um ponto do passado de Garopaba), à equipe do Hospital Mãe de Deus, à minha tia Zéca, à minha mãe Beth e ao meu marido Paul.

Ainda não estou com o nariz 100% funcionando e o meu rosto ainda está qualquer coisa inchado e roxo. Ossos do ofício. Primeira batalha, vencida.

Contudo, estou reaprendendo a respirar, instruindo a visão, aprendendo a ouvir, renovando o sentir. Segunda batalha, em exercício.